sábado, 23 de maio de 2009

Augusto dos Anjos

Ao meu pai doente

Para onde fores, Pai, para onde fores
Irei também, trilhando as mesmas ruas…
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu. Gemendo, e o horror de nossas duas
Magoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
II
Madrugada de Treze de janeiro.
Rezo, sonhando, o oficio da agonia
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! Deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza
Nem uma névoa no estralado véu…
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
III
Podre meu Pai. A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que meus lábios osculam
Micro-organismos: fúnebres pupulam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e, a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!…
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa orgíacos festins!…
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Declamado lindamente por minha avó, ao lado do caixão de meu avô. A pedido do filho mais velho do casal.

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